quarta-feira, 24 de julho de 2013

#10 - Depois de Maio



O filme francês de 2013, dirigido por Olivier Assayas, é mais uma tentativa de lidar com os acontecimentos de maio de 1968. O que ele faz de diferente é focar sua análise nos anos 1970, ou seja, no período já de decadência pós-68.

O protagonista, Gilles, no início da trama é ainda um garoto secundarista, envolvido nas discussões do movimento estudantil do liceu onde estuda. Com o decorrer da narrativa, ele e seus colegas de classe precisam tomar escolhas profissionais. É a partir desse contexto que os conflitos políticos da época nos são apresentados.

A politização de Gilles, por exemplo, sempre está relacionada ao seu interesse pela arte, seja o desenho, a pintura, a música ou o cinema. O jogo entre arte e política é vivido por ele até mesmo no plano amoroso (sua primeira namorada era artista; a segunda, militante).

Uma das cenas simbólicas dessa discussão é aquela em que ele decide não embarcar com a segunda namorada no projeto de um grupo de documentaristas, por discordar da postura estética adotada por eles. Em torno desse embate, há uma discussão sobre o famoso debate forma VS. conteúdo. Quais são as estratégias estéticas que a Esquerda deve adotar? O filme, além de não dar uma resposta para isso (e nem devemos cobrar isso dele), passa muito rapidamente pela discussão, e a torna um tanto caricata, como se houvesse apenas duas opções: o vanguardismo puramente estético ou a abordagem meramente conteudística em formato ultra-tradicional. Um tema extremamente importante de ser discutido, mas que o filme acaba lidando de maneira um tanto superficial.

Num outro momento do filme, os mesmos documentaristas relatam a experiência que tiveram com a filmagem, dizendo que perceberam a necessidade de “dar a câmera nas mãos dos operários” que foram filmar. Em seguida, comentam que ainda não sabem o que fazer com o material, se devem ou não dar para os operários editarem, uma vez que eles não conhecem a técnica. Novamente, o filme perde a oportunidade de lidar com uma discussão riquíssima ao simplesmente cortar a cena e mudar de assunto.

A narrativa, então, estabelece um percurso no qual, através do protagonista, seus envolvimentos com outros artistas e com as ações do movimento estudantil, vamos acompanhando as tensões do momento histórico. As imagens que temos são de muita repressão, ao mesmo tempo em que temos a sensação de não haver foco nas estratégias e no pensamento da Esquerda daquela época. Ainda há energia combativa, mas o projeto de 1968 já está degringolando.

No final, o protagonista – até então dividido entre a arte e a militância mais hardcore –, é sugado pela indústria. Por intermédio de seu pai, cineasta, começa a trabalhar como assistente num projeto de cinema que se diz independente, mas é claramente comercial e distante do tipo de proposta artística ou política com a qual o jovem esteve engajado até então.

Curiosamente, muitos dos personagens ao final voltam para o colo dos pais. Esse movimento é claramente um simbolismo do retrocesso histórico pós-68. Uma vez que a revolução não aconteceu, e os espaços de luta estão cada vez mais cercados, resta aos jovens procurar um lugar no mercado, e serem acolhidos pelo calor dos braços da geração anterior.

Mesmo com essa inserção explícita na indústria cultural, a última imagem do filme é do subconsciente de Gilles. O que ele nos mostra são imagens nostálgicas e idealizadas de sua primeira namorada. Além da conexão que estabelecemos entre essa namorada e o lado mais artístico do protagonista, a moça parece funcionar aqui como símbolo de um momento inicial, no qual as coisas ainda pareciam fazer sentido, e o projeto revolucionário (nas esferas da juventude, da arte e da política) prometia algo. Era uma utopia ainda possível.

Além do tom nostálgico do filme – que incomoda, mas faz certo sentido historicamente – vejo como problemático o fato de haver milhares de piadas internas, referências a filmes, revistas, jornais, e músicas da época, que por estarem muito jogadas e serem rapidamente descartadas pela montagem acelerada, não permitem ao espectador (ainda mais nós, de outra geração e país)  estabelecer relações e construir significados. Referências, a meu ver, podem funcionar como um convite à pesquisa, mas também afastar o espectador, se não permitem um mínimo de tempo e de outras estratégias que nos permitam guardar as informações e até mesmo ter um ponto de partida (algum tipo de hiperlink) para encontrar a referência futuramente.


O que mais me incomodou é que o filme, ao querer fazer um grande panorama da situação da Esquerda, lida com milhares de assuntos de maneira um tanto fragmentada e superficial. Com tantas questões jogadas em nossa frente, fica difícil compreender as pequenas coisas que constroem esse todo que ele pretende representar. Não se sabe muito bem qual é a tese do filme, se é que ele se propõe a tal. E, se a tese for uma tentativa de mapeamento de 68, a pergunta que fica é: por que focar exatamente no momento de desmonte, e bem agora, quando historicamente começamos finalmente a ter sinais de possibilidades de mudanças históricas?


sábado, 13 de julho de 2013

#9 Truque de mestre


Bateu aquela vontade repentina de ir ao cinema sozinha em plena 6ª feira. E escolhi o filme mais hollywoodiano possível – dentro dos limites da minha paciência e do meu interesse, claro – para alegrar minha noite.

Não conhecia o diretor (que mais tarde vi ser o mesmo de Fúria de Titãs e de O Incrível Hulk), mas o roteiro que vi no trailer me interessou muito.

Truque de Mestre (Now you see me, EUA, 2013), dirigido por Louis Leterrier, conta a história de um grupo de mágicos com diferentes habilidades que se reúnem para fazer um projeto robinhoodiano.  Os shows-atos dos “Quatro Cavaleiros” roubam dinheiro de bancos e milionários e distribuem para a platéia. Há cenas catárticas, como aquela em que vemos o dinheiro saindo da conta do milionário e sendo devolvido para as pessoas que foram vítimas das falcatruas de sua empresa. 

Sem entrar em detalhes do enredo, que não sai muito do que já descrevi acima, o que me chama a atenção nesse filme é a metáfora da Mágica. Se é um filme de roubo, que parece defender a tese da necessidade da distribuição de renda, esse roubo só é possível através da mágica. Não é à toa que o primeiro show acontece em Las Vegas, o que reforça ainda mais a idéia de “capitalismo cassino” que permeia o imaginário do filme e da nossa sociedade contemporânea.

Se temos a sensação de que o dinheiro some e reaparece como mágica nas transações diárias que testemunhamos na economia atual, não me parece inverossímil que o filme construa essa relação nos mesmos termos, levando a metáfora da mágica ao pé da letra. O que preocupa é, de novo, a mágica como única possibilidade de reviravolta. A justiça social parece depender de um milagre. Ou seria de um truque?

Os Quatro Cavaleiros, além disso, são liderados por alguém que nem eles mesmos conhecem, apenas obedecendo ordens. Novamente, temos a dificuldade de figuração de uma liderança como sintoma de nosso momento histórico. E, se não conhecemos o líder, sabemos menos ainda de que lado estão os Cavaleiros. No final, o filme revela quem é. Não farei spoiler aqui, mas já adianto que essa revelação não esclarece muito a posição ideológica do filme.

Além do suspense em relação ao líder, o filme brinca também com os aliados. E com a figura do 
detetive/investigador, que parece estar sempre um passo atrás dos mágicos, iludido pelos truques. O maior problema é que não só o detetive, mas também nós espectadores, somos expostos ao ilusionismo dos truques – nesse caso da montagem. As cenas, recheadas de ação, possuem uma montagem rápida que cria o mesmo efeito ilusionista da mágica.


O que os mágicos fazem em seu ato, apesar de flertarem com um rompimento interessante da lógica do Capital ao brincarem com a coisa de maneira robinhoodiana, é puro espetáculo. As massas, hipnotizadas, comportam-se passivamente e estão lá para serem entretidas, num jogo que já tem todas as cartas marcadas. Nós, espectadores, somos expostos ao mesmo tipo de espetáculo. É um filme sintomático de si mesmo.


quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

#8 - Habemus Papam



Confesso que os eventos recentes com o papa Bento XVI foram o motivo principal que me fez correr para assistir a esse filme e aproveitar a vibe. E por ser do Nani Moretti, esperava uma comédia com altas alfinetadas políticas. O filme tem um pouco desses dois elementos, mas menos do que eu imaginava. Em compensação, transborda em bizarrice (característica que eu uso como um elogio) e em sensibilidade humana.

Sim, a história tem coincidentemente muita relação com os últimos eventos do Vaticano; parece até que Moretti previa a renúncia do atual-ex papa quando fez o filme. A diferença é que o papa do filme já considera sua renúncia minutos após ser eleito pelo conclave, numa espécie de síndrome do pânico ou stage fright. Simplesmente recusa-se a aparecer na janela e fazer seu discurso de posse.

É diante desse surto do papa que a questão do humano por trás da santidade começa a ficar mais evidente no filme. Antes disso, porém, vemos uma série de candidatos ao papado tendo suas próprias reações de insegurança, todos apavorados com a possibilidade de serem escolhidos. Nosso protagonista, portanto, não é exceção.  Aqui, o filme brinca com a maneira pela qual se elege um papa. É uma “eleição” tão anti-democrática que nem mesmo os candidatos queriam estar ali.


Ao perceberem que o surto do papa não foi algo passageiro, e que precisariam lidar com isso de alguma forma para apaziguarem a imprensa, os fiéis e até mesmo para poderem sair daquela prisão temporária no Vaticano e viverem suas vidas, os cardeais decidem levar até o Vaticano um renomado psicanalista italiano. A partir daqui o filme fica ainda mais surreal, como é de se imaginar. [Inclusive com uma pitada de "Máfia no Divã", eu diria].

Como conciliar a psicanálise, vista como uma ciência dos homens e suas fragilidades, com a aura religiosa do Vaticano? Numa cena impagável, vemos os obstáculos dessa combinação bizarra, quando os cardeais se recusam a dar privacidade ao papa em sua terapia, e quando um dos cardeais dá uma lista de assuntos proibidos na análise (sexo, família, infância, desejos reprimidos, sonhos... – basicamente todo o arsenal freudiano básico). O próprio psicanalista aparece numa chave “humanizada”, longe da figura clichê do cientista objetivo. É uma figura problemática, que traz elementos da sua vida privada o tempo todo, egocêntrico e com manias de grandeza.

Numa das epifanias do papa, ele descobre que seu sonho era ser ator, uma opção que lhe foi rejeitada quando criança e a causa de muitos de seus traumas. O curioso, no entanto, é que ser ator não é muito diferente do que ele faria enquanto papa. Ambos representam papéis. Isso fica evidente quando vemos que ele é facilmente substituível por um dublê sem que ninguém perceba.

O filme trata de muitas coisas, mas talvez o mais central seja o choque entre esse papel ‘divino’ e o papel social e humanizado do dia-a-dia. Para o papa, que ainda não se descobriu enquanto indivíduo e não entendeu ainda o mundo em que vive, é impossível assumir um papel de liderança. Mas como recusar, quando se foi eleito, e esse voto supostamente veio de Deus?

Habemus Papam. Só que não.


Veja o trailer do filme aqui
Baixe o torrent aqui

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

#7 - O som ao redor



Antes de conseguir assistir ao filme,  li muitos textos que fazem análises super interessantes sobre ele. Meu texto será bem despretensioso, só fazendo mesmo um breve relato dos pontos que me chamaram atenção, e recomendando fortemente que todos assistam a esse filme sensacional.

O Som ao Redor se passa na cidade de Recife,  e possui um enredo que se assemelha ao multiplot, mas não chega a ser exatamente um, pois algumas histórias não chegam a se cruzar, e parecem a princípio isoladas umas das outras até mesmo em seus simbolismos.

É muito difícil explicar, pra quem não viu o filme, sobre o que ele é. Ele é sobre tudo e nada ao mesmo tempo, com personagens fortes, mas que não se desenvolvem tanto num nível psicológico para que possamos acompanhá-los de maneira mais tradicional. Não tem grandes viradas dramáticas, nem grandes acontecimentos, até quase o final do filme.

Um tema que fica mais evidente é o do dia-a-dia urbano, principalmente a paranóia crescente dos moradores do bairro com a violência que os cerca. Porém, o incômodo dessas pessoas parece vir de outro lugar. O som ao redor, os barulhos que os incomodam, pode até ser a princípio um latido incessante do cachorro do vizinho, mas veremos que o buraco é muito mais embaixo.

Em rápidos flashes, ou mesmo na periferia do enquadramento, vemos os resquícios da escravidão e da lógica do coronelismo permearem o dia-a-dia daquele bairro de classe média; quanto mais eles parecem ignorar ou esconder essa ‘sujeira’ ou ‘barulho’, mais difícil fica, até os momentos em que as coisas se escancaram. Ou, numa metáfora explícita do filme, o sangue escorre como uma cachoeira.


As melhores cenas, na minha opinião, são as que exploram a relação que as famílias de classe média estabelecem com as empregadas domésticas, mesmo que estas não apareçam no enquadramento. Gosto bastante também de alguns detalhes sobre os personagens ligados ao coronelismo, o avô dono de quase todos os terrenos do bairro, e o neto que usa e abusa do poder de seu avô para cometer delitos sem punição. São eles os únicos personagens que conseguem caminhar pelas ruas perigosas da cidade em plena madrugada, sem qualquer medo. A paranóia fica para os outros. O avô até mergulha na praia cheia de tubarões, tão confiante que é de que seu poder é inabalável.

Talvez o personagem mais curioso seja João, o outro neto, e suas crises de consciência, sentindo-se levemente culpado por pertencer à classe dominante. O filme é cheio de “boas ações” dele, preocupando-se com os fracos e oprimidos, desde que não atrapalhe seus compromissos, é claro.

Por fim, vale lembrar que o título não é apenas referente ao simbolismo temático, mas também um convite a observarmos a edição de som do filme, que é muito bem feita e capturada de maneira muito diferente de outras produções. Assim, os sons que geralmente não escutamos, principalmente porque estamos em uma cidade grande, ficam mais altos. Os diálogos, que deveriam ser captados numa qualidade melhor, às vezes são incompreensíveis. Genial.


Assista ao trailer aqui.

O filme ainda está nos cinemas. 

domingo, 10 de fevereiro de 2013

#6 - Good Hair




Good Hair (2009, EUA) é um documentário produzido, narrado e protagonizado pelo comediante Chris Rock, que sai em busca de informações a respeito da cultura que se formou em torno do cabelo africano nas últimas décadas.
Logo no início do filme, Chris Rock comenta que o que o impulsionou a investigar o assunto foi uma pergunta que sua filha de 5 anos fez para ele: “Por que eu não tenho cabelo bom”?
A jornada em busca de uma explicação para essa questão ou, em outras palavras, para os motivos pelos quais os negros (essencialmente as mulheres negras) pagam fortunas para alisar seus cabelos, numa necessidade urgente de negar literalmente suas raízes africanas.
Até aqui o filme promete, né? Na verdade, porém, ele me decepcionou um pouco. Talvez porque o assunto é tão interessante que gera altas expectativas, ou talvez porque o Chris Rock parece ter ficado tão chocado com as coisas que descobriu que ele mal conseguiu reagir a isso e lidar de maneira crítica e instigante.

Ainda assim, vale a pena ver o filme, exatamente por essas revelações capazes de chocar o comediante. Alguns exemplos são os preços absurdos dos apliques (e das manutenções semanais que eles exigem), a origem bizarra desses apliques (que são feitos com cabelos humanos), a relação com as indústrias chinesas e coreanas e as mulheres indianas (maiores doadoras de cabelo, pra não dizer vítimas de um golpe que envolve os templos da Índia e o tráfico de cabelos), os malefícios surreais que os produtos químicos de alisamento causam para a saúde das mulheres, etc. Isso sem mencionar as conseqüências disso no dia-a-dia das mulheres, que nunca entram numa piscina, vivem estressadas com a chuva, nunca tomam banho com seus namorados e maridos, e precisam evitar certas posições sexuais para que não tenham constrangimentos com os cabelos.


O filme passa um bom tempo acompanhando uma espécie de reality show de cabeleireiros famosos, o que pra mim é o ponto mais fraco de todo o roteiro. Poderia ter focado mais nos três fundamentos em que se baseiam toda a questão do cabelo: o racismo, o machismo e o capitalismo.
Racismo, sim, porque não é coincidência que o cabelo ruim é o negro, e o bom é o liso, no padrão europeu.
Machismo, sim, porque aposto que, de cada 100 pessoas (negras ou não) com problemas sérios de auto-estima com seus cabelos, 99 são mulheres. São elas que precisam estar “bonitas”, “apresentáveis”, etc, para conseguir um emprego, um marido, uma vida feliz. Há uma cena com uma moça de Black Power em que suas amigas mencionam que jamais a contratariam para um emprego por causa de seu cabelo. “Ele não passa seriedade”.
 Capitalismo, sim, porque quase nada disso seria assim se não houvesse um grande interesse de mercado incentivando as pessoas a consumirem esses produtos. São 9 bilhões de dólares apenas na indústria para cabelos negros.
O filme pouco explora essas três questões, mas nos deixa com uma sensação muito amarga ao revelar, nas vozes das próprias mulheres negras (muitas delas pobres), que a coisa toda está tão intrincada na cultura afro-americana que parece quase impossível haver uma mudança. Com que direito ele impedirá suas filhas de alisarem seus cabelos, ou de colocaram apliques, se isso significa a única opção que elas têm de se inserirem e serem aceitas na sociedade?
Ele não diz isso, mas suas expressões de tristeza ao longo do filme transmitem essa sensação. Uma mentira dita 50 vezes torna-se uma verdade. Racismo, machismo e capitalismo juntos vêm mentindo para nós há muito tempo, chegando ao ponto de definirem claramente o que é certo e o que é errado, o que é bonito e o que é feio, sem que a gente perceba que é algo imposto, e não natural.  


Veja o trailer do filme aqui

Baixe o torrent aqui [via piratebay]



terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

#5 - Five broken cameras



“5 Broken Cameras” é um documentário dirigido pelo palestino Emad Burnat, com participação do diretor israelense Guy Davidi. Emad é também quem está por trás da câmera do filme, e é ao mesmo tempo protagonista e narrador da história.

Em linhas gerais, ele [e suas 5 câmeras] nos conta a história da luta de resistência de seu vilarejo, Bil’in, ameaçado pela ocupação israelense. Mas o filme é muito mais interessante do que essa breve descrição faz parecer. A história começa em 2005, quando ele compra sua primeira câmera para filmar o nascimento do seu filho caçula. Nessa mesma época, ele inicia-se a construção de uma barreira que ultrapassa a fronteira e ocupa parte do território de seu vilarejo, roubando deles sua terra, lar e sustento. A comunidade palestina inicia um processo de resistência que sua câmera vai testemunhar junto com o crescimento de seu filho.

Assim se passam 5 anos e 5 câmeras. As câmeras, também personagens do filme, possuem sua própria história de resistência e fragilidade. Assim como elas quebram (ou melhor, são destruídas pelos soldados que não querem ser filmados), amigos e parentes de Emad são presos, feridos, assassinados nesse processo.


A precariedade das câmeras e de seu processo de filmagem é evidente durante o filme. O importante, no entanto, é filmar. Mesmo fora de enquadramento, sem cores ou com defeito na lente. E essa estética da precariedade torna o filme ainda mais rico.

Emad muitas vezes aponta para o fato de que a câmera salva sua vida, seja fisicamente (a bala se instala dentro do aparelho, protegendo o corpo do cineasta), seja politicamente, pois ela funciona como uma arma (mesmo que seja uma simples pedra, comparada à força do antagonista) que ele aponta para o inimigo. Sua câmera, portanto, não é apenas testemunha, mas agente político e histórico.

Na minha opinião, o mais incrível desse filme é a relação que ele consegue fazer com o registro da vida do filho e da história política da comunidade, tudo mediado pela história das suas 5 câmeras. Cada uma delas pontua uma fase na vida de seu filho e na guerra entre palestinos e israelenses, de tal maneira que fica impossível separar o pessoal do político. No caso dessa comunidade, é mesmo impossível, uma vez que tiros e explosões, sangue e manifestações fazem parte do cotidiano deles.

Quando ouvimos o cineasta filosofar sobre a existência, sua crise existencial é a mais pura possível, pois é permeada pelo risco de vida constante. Também enquanto camponês, sua luta política é a mais concreta possível: para eles, a luta pela terra é uma clara batalha de identidade. Filmar, no caso de Emad, serve para dar um sentido a tudo aquilo que ele vive.

É surpreendente ver que as primeiras palavras do filho se referem à fronteira, e que seus primeiros passos acontecem ao redor do muro. Automaticamente nos colocamos a questão: até que ponto deve-se envolver uma criança nisso tudo? Mas em seguida nos perguntamos se é possível não envolvê-la. Como proteger as crianças? Mantendo as longe de tudo? Ou perto, para aprenderem?

Um momento forte é o diálogo em que o filho pergunta alguns porquês ao pai. “Por que você não mata os soldados com uma faca?” “Por que eles mataram Phil? O q ele fez pra eles?”. Isso é seguido de uma cena em que vemos outra criança, inconformada com a prisão de seu pai, que acontece na sua frente.

Não dá pra dizer mais que isso sem estragar a surpresa e a beleza da narrativa. Paro por aqui com uma frase de Emad que, ao resumir sua experiência, resume também o papel do cinema político: “Forgotten wounds cannot be healed. So I film to heal. It helps me confront life and survive”.

OBS: O filme está concorrendo ao Oscar de melhor documentário. Pudera!

Assista aqui ao trailer do filme.

Clique aqui para baixar o torrent [via PirateBay]




domingo, 27 de janeiro de 2013

#4 - Django Livre




Django Livre me surpreendeu positivamente. Muito. Para começar, não costumo gostar dos filmes do Tarantino; simplesmente não fazem meu tipo. A sensação que tenho, em geral, é que eles possuem um “fetiche da violência”, ou que transformam violência em estética, quase como um prazer mórbido.
Django Livre é um filme extremamente violento, talvez bem mais do que os outros do Tarantino. Mas nesse filme a violência é o tema, e escancará-la para nós torna-se o mais interessante do filme, pois o passado da escravidão sempre foi algo que nós brancos da América tentamos esconder. A violência extrema do filme nos faz pensar por que é ruim ver tanto sangue derramado. O desconforto vem da culpa? Ou do medo de um dia essa violência se voltar contra os brancos?



Algumas coisas em Django Livre são muito específicas da experiência norte-americana com a escravidão, a violência e a lei. Outras, porém, são tão parecidas com as relações que existiam na escravidão brasileira (e cujos resquícios temos até hoje) que chegam a arrepiar. O misto de cordialidade e violência, por exemplo, permeia todo o filme. Algumas cenas poderiam ilustrar facilmente um capítulo de Casa-Grande e Senzala. E me fizeram lembrar muito o filme brasileiro Quanto vale ou é por quilo.


As referências que Tarantino faz à linguagem de faroeste são incríveis. Principalmente quando se pensa no simbolismo todo que o faroeste possui; os fora-da-lei, a justiça com as próprias mãos, a vontade de contar histórias sobre a expansão norte-americana em busca de novos territórios. A grande diferença é que o protagonista é um negro, e isso causa desconforto. Primeiramente, o desconforto está dentro da narrativa, a cada esquina que Django chega montado em seu cavalo (como Rosa Parker sentada no ônibus causou nos anos 1950). Fora da narrativa, o desconforto está em nós, espectadores, que sentimos ao mesmo tempo uma catarse muito grande em vê-lo “matar brancos e ainda ganhar dinheiro com isso”, e um certo arrepio em imaginar que os injustiçados do passado (e por que não os do presente?) podem se cansar da servidão forçada e exigir justiça.


Apesar da ousadia de colocar um negro como protagonista num momento histórico em que eles sequer eram considerados seres humanos, a crítica acusa o filme de pecar no uso da sátira. “Não levar a escravidão a sério é um desrespeito”, disseram muitos bem-intencionados. Discordo. O desrespeito deve sim ser criticado, afinal penso que o humor não é uma carta branca para se dizer qualquer bobagem, e estar acima das posições políticas. Mas não creio que esse seja o caso de Django Livre. Aqui, a sátira é usada não para debochar ou diminuir a experiência da escravidão, mas para incomodar, fazer pensar. A única cena de deboche que eu vi no filme foi a que mostra um grupo que seria protótipo da KKK. Sim, eu ri muito, e senti o filme debochar por completo dos personagens. E isso mostra que o humor se posiciona, sim, politicamente. Como era contra o movimento mais escroto da história dos EUA, digamos que eu não encarei essa parte exatamente como um defeito do filme.


Li também alguns críticos acusando o filme de simplismo, ao colocar os brancos todos como seres maléficos  que precisam ser exterminados violentamente pelos negros. Não vi isso no filme. Aliás, o grande personagem do filme nem é Django, e sim seu parceiro Schultz, um branco progressista que é o mais próximo de “herói” na narrativa, talvez o grande exemplo de consciência contra os abusos da escravidão. E isso sem perder as sutilezas de mostrar sua própria profissão (caçador de recompensas) como uma espécie de tráfico de pessoas-mercadorias, assim como a escravidão que ele tanto critica. E o que dizer de Stephen, o negro que defende com unhas e dentes a escravidão, o mais próximo de “vilão” que existe no filme?

Finalmente, há quem diga que o filme distorceu a História ao colocar Django em situações que um negro jamais poderia ter conseguido viver naquele momento histórico. Já discordaria desse argumento por ser completamente absurdo exigir que a arte sirva apenas como retrato fiel da realidade. Mas o que mais me espanta é que as pessoas vejam o personagem Django como um homem livre. Em nenhum momento do filme ele está livre de fato. Ele está sempre interpretando um papel para conseguir o mínimo de respeito das pessoas – brancos e negros – aonde quer que vá. E mesmo assim, como é dito no filme, Django é 1 em 10.000. A exceção de Django só confirma a regra. Mas que é lindo vê-lo montado em seu cavalo com a donzela que resgata, por mais “historicamente inverossímil” que isso seja, ah, isso é! E é por isso que a ficção nos encanta; por ser capaz de figurar coisas que a sociedade em si ainda não é/era capaz de figurar.



Assista ao trailer aqui

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

#3 - Elefante Branco



Filme argentino bom e com o ator Ricardo Darin é quase um pleonasmo. Elefante Branco (Pablo Trapero, 2012) não é uma exceção.
Confesso que filme latino-americano sobre miséria, favelas e tráfico de drogas às vezes cansa um pouco. O clichê da linguagem documental (câmera na mão, luz que estoura, dialetos incompreensíveis) também. Mas se a combinação de tudo isso vier com um roteiro interessante e ligada a uma mensagem política que não caia nos perigos de Tropa de Elite, o filme já ganhou minha atenção.
O que mais me chama atenção nesse filme é como, a partir de um enredo beirando a narrativa clássica, com um herói recém-chegado a um lugar novo que lhe é apresentado por um mentor, e que vivencia conflitos morais e materiais durante sua jornada, consegue se amarrar a diversos (quase que demasiados) conflitos políticos e sociais, traçando ao mesmo tempo um panorama da periferia argentina, da igreja católica e da polícia.


Não vale a pena contar aqui a história toda do filme, mesmo porque o roteiro parece linear, mas é bem confuso (o que não é necessariamente uma crítica). O que vale a pena é mencionar que o ponto alto do filme, ao menos para mim, é a análise que ele faz sobre a religião como elemento integrador de uma comunidade, e o potencial que isso pode ter se as figuras por trás da instituição estiverem engajadas com um projeto político, e não apenas com discursos e orações.

Há quem diga (se não me engano, o próprio Brecht) que não podemos separar os indivíduos das instituições às quais eles pertencem. Discordo em absoluto, e esse filme parece discordar também. Afinal, a luta dos padres, protagonistas do filme, vai muito além do que a instituição igreja lhes permite e lhes ensina. E, a partir de sua profissão (sem se prenderem a ela, mas sem precisarem renegá-la), tornam-se agentes históricos daqueles pra colocar muito ateu marxista no chinelo.  Basta lembrar do histórico da Teologia da Libertação no Brasil e outros locais da América Latina pra ver que não estou exagerando.
Ópio do povo? Não sei. Depende do que se considera ópio. Se é uma válvula de escape que nos faz ignorar os problemas do aqui-agora e apostas as fichas numa solução de cima para baixo, nesse filme a religião (ou melhor, os seres humanos que se relacionam através da religião) está longe de ser ópio. É instrumento de luta. É fé no aqui-agora, e não em promessas abstratas apenas. E por isso é humana, contraditória, falha e mortal.


Assista ao trailer aqui.


quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

#2 - No, de Pablo Larraín



Quase desisti de escrever sobre esse filme pro blog. Assisti há alguns dias, e gostei tanto que achei que ele merecia uma crítica mais aprofundada, objetivo que este blog não tem. Aqui pretendo apenas fazer um registro dos filmes que assisti em 2013, e breves comentários sobre eles.

Mas o filme é tão relevante para a discussão entre cinema e política, que é o tema escolhido pro blog, que não tinha como simplesmente ignorá-lo. Então, com o perdão dos comentários que nunca chegarão à altura da complexidade do filme, vamos lá.

"No" faz parte de uma trilogia do diretor Pablo Larraín sobre a ditadura de Pinochet no Chile (os outros filmes são Tony Monero, de 2008, e Post Mortem, de 2010). Nesse último, a história se concentra em torno do plebiscito convocado pelo próprio Pinochet para legitimar seu governo. A população votaria em "SÍ" caso quisesse que Pinochet continuasse no poder, ou "NO", caso quisesse que ele saísse e fossem convocadas eleições presidenciais. O protagonista, representado pelo maravilhoso ator Gael Garcia Bernal (aiai...), é um jovem publicitário contratado pelos organizadores da campanha contra Pinochet para elaborar as estratégias e propagandas.

O que torna tudo mais interessante é exatamente o fato de o personagem vir do mundo da publicidade. Com essa combinação explosiva entre marketing e política, o filme faz um mapeamento da história da Esquerda e das suas tentativas de representação e intervenção cultural na luta de classes. Assim, acaba se tornando metalinguístico, indiretamente trazendo à tona a discussão do que é fazer cinema político, quais são as estratégias estéticas e os limites éticos por trás disso. Tanto a monotonia e mesmice das campanhas mais 'tradicionais' de Esquerda, que se mostram incapazes de dialogar com seu público ao repetir as mesmas fórmulas de décadas (para não dizer séculos) passados, quanto a brutal infantilização e apagamento histórico     das novas estratégias quase que puramente mercadológicas da campanha proposta pelo publicitário são alvos da crítica do filme.

Vale ressaltar aqui que o filme é incrivelmente divertido. Damos muitas risadas ao ver os absurdos que cada campanha faz para conseguir atrair a atenção da população chilena, e vemos que muito do marketing político surreal dos últimos anos já existe há muito tempo. Apelações das mais incríveis, estéticas das mais bregas, composições musicais e cenários de chorar... Enfim, só vendo o filme pra entender até onde a coisa vai.

Se o saldo final do filme é otimista ou não, fica difícil dizer. Ele possui uma estrutura circular que parece apontar para um certo cinismo de que não há nada de muito novo no front, mas é inegável o fato de que a ditadura chilena foi derrotada em grande parte POR CAUSA dessas estratégias problemáticas. Na minha opinião - que talvez vá além do filme - a mensagem é que, quer queiramos ou não, precisamos admitir que o cenário político é outro, e que novas estratégias (não necessariamente as da publicidade) são necessárias.

Uma curiosidade estética do filme é a escolha do diretor em filmar com uma câmera U-matic 3/4, comumente usada no final da década de 80, para dar mais realismo às imagens. Assim conseguiu obter a textura e as cores dos documentários de televisão chilenos da época que se confundem com as cenas de ficção do filme. [Fonte: http://www.socinema.com.br/no-pablo-larrain]

Nas palavras do diretor: “Eu cresci nos anos 80, durante a ditadura. O que vimos na televisão, as imagens em baixa definição, era uma imagem suja que está intocada no meu imaginário. Assim como na memória coletiva do povo chileno que está cheia de lembranças de escuridão e impureza”.

O trailer com legendas em português pode ser visto aqui.

Não preciso nem dizer que os outros dois filmes da trilogia já entraram na lista dos filmes que pretendo ver em 2013, né?



quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

#1 - Rebeldes do futebol


Para estrear o blog, nada melhor do que um filme que eu não fazia ideia que existia, e que foi indicação de amigos que estavam em casa comemorando a virada do ano. Além disso, que foi exibido num canal que eu nunca assisto, o Sportv. E que tem como tese a defesa das relações entre fenômenos culturais e política. No caso, o futebol.

Eu, que já fui são-paulina e hoje sou corintiana passiva, confesso que já tive minha dose de desilusão com o esporte, e já cheguei a afirmar, nos meus tempos de "intelectualóide sangue-nos-óio", que futebol era o ópio do povo.

Porém, como o filme "Rebeldes do Futebol" - e a vida - ensinam pra gente, as coisas não são tão simples assim. Como todo fenômeno cultural, o futebol é também palco das contradições sociais que estão fora do campo, quer a gente goste ou não, quer ele reflita momentos de maior conservadorismo ou de "rebeldia".

Bem, o filme mapeia exatamente esse último ponto: a existência de rebeldes na história do futebol, de figuras que tiveram papéis importantes na política através do esporte. Esse tema já foi discutido (brilhantemente, na minha opinião) em "Invictus", do Clint Eastwood - apesar de não ser sobre futebol, mas sobre rugby, e de maneira mais indireta (e ainda mais brilhante) em "À procura de Eric", de Ken Loach.

Este é um documentário sobre 5 jogadores de futebol que foram militantes de causas importantes em seus países. E é narrado por um sexto jogador, Eric Cantona, que também tem suas histórias de rebeldia e engajamento.

Os 5 personagens são: o bósnio Predrag Pasic, o marfinense Didier Drogba, o chileno Carlos Caszely, o argelino Rachild Mekhloufi e o brasileiríssimo Sócrates.

De quebra, ainda temos uma homenagem final ao Che Guevara, frases grandiloquentes e performáticas de Cantona, o gatíssimo Raí falando sobre seu irmão Sócrates e o grande Ken Loach falando sobre o futebol como metáfora do espírito de coletividade que nos é tão raro atualmente.

Para mim, os melhores momentos estão nos depoimentos do chileno Caszely, ao nos contar a história de quando ele se recusou a apertar a mão de Pinochet.

E pra nós, brasileiros, é emocionante aprender mais sobre o projeto da Democracia Corintiana, e rever imagens da polêmica camisa do finado Sócrates e das faixas de apoio às eleições em plena ditadura.


No site oficial do filme há muito mais informações e spoilers para quem quiser.


ORIGINAL: Les Rebelles du Foot (2012)
PAÍS: França
DIRETOR: Gilles Rof, Gilles Perez
90 minutos