domingo, 27 de janeiro de 2013

#4 - Django Livre




Django Livre me surpreendeu positivamente. Muito. Para começar, não costumo gostar dos filmes do Tarantino; simplesmente não fazem meu tipo. A sensação que tenho, em geral, é que eles possuem um “fetiche da violência”, ou que transformam violência em estética, quase como um prazer mórbido.
Django Livre é um filme extremamente violento, talvez bem mais do que os outros do Tarantino. Mas nesse filme a violência é o tema, e escancará-la para nós torna-se o mais interessante do filme, pois o passado da escravidão sempre foi algo que nós brancos da América tentamos esconder. A violência extrema do filme nos faz pensar por que é ruim ver tanto sangue derramado. O desconforto vem da culpa? Ou do medo de um dia essa violência se voltar contra os brancos?



Algumas coisas em Django Livre são muito específicas da experiência norte-americana com a escravidão, a violência e a lei. Outras, porém, são tão parecidas com as relações que existiam na escravidão brasileira (e cujos resquícios temos até hoje) que chegam a arrepiar. O misto de cordialidade e violência, por exemplo, permeia todo o filme. Algumas cenas poderiam ilustrar facilmente um capítulo de Casa-Grande e Senzala. E me fizeram lembrar muito o filme brasileiro Quanto vale ou é por quilo.


As referências que Tarantino faz à linguagem de faroeste são incríveis. Principalmente quando se pensa no simbolismo todo que o faroeste possui; os fora-da-lei, a justiça com as próprias mãos, a vontade de contar histórias sobre a expansão norte-americana em busca de novos territórios. A grande diferença é que o protagonista é um negro, e isso causa desconforto. Primeiramente, o desconforto está dentro da narrativa, a cada esquina que Django chega montado em seu cavalo (como Rosa Parker sentada no ônibus causou nos anos 1950). Fora da narrativa, o desconforto está em nós, espectadores, que sentimos ao mesmo tempo uma catarse muito grande em vê-lo “matar brancos e ainda ganhar dinheiro com isso”, e um certo arrepio em imaginar que os injustiçados do passado (e por que não os do presente?) podem se cansar da servidão forçada e exigir justiça.


Apesar da ousadia de colocar um negro como protagonista num momento histórico em que eles sequer eram considerados seres humanos, a crítica acusa o filme de pecar no uso da sátira. “Não levar a escravidão a sério é um desrespeito”, disseram muitos bem-intencionados. Discordo. O desrespeito deve sim ser criticado, afinal penso que o humor não é uma carta branca para se dizer qualquer bobagem, e estar acima das posições políticas. Mas não creio que esse seja o caso de Django Livre. Aqui, a sátira é usada não para debochar ou diminuir a experiência da escravidão, mas para incomodar, fazer pensar. A única cena de deboche que eu vi no filme foi a que mostra um grupo que seria protótipo da KKK. Sim, eu ri muito, e senti o filme debochar por completo dos personagens. E isso mostra que o humor se posiciona, sim, politicamente. Como era contra o movimento mais escroto da história dos EUA, digamos que eu não encarei essa parte exatamente como um defeito do filme.


Li também alguns críticos acusando o filme de simplismo, ao colocar os brancos todos como seres maléficos  que precisam ser exterminados violentamente pelos negros. Não vi isso no filme. Aliás, o grande personagem do filme nem é Django, e sim seu parceiro Schultz, um branco progressista que é o mais próximo de “herói” na narrativa, talvez o grande exemplo de consciência contra os abusos da escravidão. E isso sem perder as sutilezas de mostrar sua própria profissão (caçador de recompensas) como uma espécie de tráfico de pessoas-mercadorias, assim como a escravidão que ele tanto critica. E o que dizer de Stephen, o negro que defende com unhas e dentes a escravidão, o mais próximo de “vilão” que existe no filme?

Finalmente, há quem diga que o filme distorceu a História ao colocar Django em situações que um negro jamais poderia ter conseguido viver naquele momento histórico. Já discordaria desse argumento por ser completamente absurdo exigir que a arte sirva apenas como retrato fiel da realidade. Mas o que mais me espanta é que as pessoas vejam o personagem Django como um homem livre. Em nenhum momento do filme ele está livre de fato. Ele está sempre interpretando um papel para conseguir o mínimo de respeito das pessoas – brancos e negros – aonde quer que vá. E mesmo assim, como é dito no filme, Django é 1 em 10.000. A exceção de Django só confirma a regra. Mas que é lindo vê-lo montado em seu cavalo com a donzela que resgata, por mais “historicamente inverossímil” que isso seja, ah, isso é! E é por isso que a ficção nos encanta; por ser capaz de figurar coisas que a sociedade em si ainda não é/era capaz de figurar.



Assista ao trailer aqui

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

#3 - Elefante Branco



Filme argentino bom e com o ator Ricardo Darin é quase um pleonasmo. Elefante Branco (Pablo Trapero, 2012) não é uma exceção.
Confesso que filme latino-americano sobre miséria, favelas e tráfico de drogas às vezes cansa um pouco. O clichê da linguagem documental (câmera na mão, luz que estoura, dialetos incompreensíveis) também. Mas se a combinação de tudo isso vier com um roteiro interessante e ligada a uma mensagem política que não caia nos perigos de Tropa de Elite, o filme já ganhou minha atenção.
O que mais me chama atenção nesse filme é como, a partir de um enredo beirando a narrativa clássica, com um herói recém-chegado a um lugar novo que lhe é apresentado por um mentor, e que vivencia conflitos morais e materiais durante sua jornada, consegue se amarrar a diversos (quase que demasiados) conflitos políticos e sociais, traçando ao mesmo tempo um panorama da periferia argentina, da igreja católica e da polícia.


Não vale a pena contar aqui a história toda do filme, mesmo porque o roteiro parece linear, mas é bem confuso (o que não é necessariamente uma crítica). O que vale a pena é mencionar que o ponto alto do filme, ao menos para mim, é a análise que ele faz sobre a religião como elemento integrador de uma comunidade, e o potencial que isso pode ter se as figuras por trás da instituição estiverem engajadas com um projeto político, e não apenas com discursos e orações.

Há quem diga (se não me engano, o próprio Brecht) que não podemos separar os indivíduos das instituições às quais eles pertencem. Discordo em absoluto, e esse filme parece discordar também. Afinal, a luta dos padres, protagonistas do filme, vai muito além do que a instituição igreja lhes permite e lhes ensina. E, a partir de sua profissão (sem se prenderem a ela, mas sem precisarem renegá-la), tornam-se agentes históricos daqueles pra colocar muito ateu marxista no chinelo.  Basta lembrar do histórico da Teologia da Libertação no Brasil e outros locais da América Latina pra ver que não estou exagerando.
Ópio do povo? Não sei. Depende do que se considera ópio. Se é uma válvula de escape que nos faz ignorar os problemas do aqui-agora e apostas as fichas numa solução de cima para baixo, nesse filme a religião (ou melhor, os seres humanos que se relacionam através da religião) está longe de ser ópio. É instrumento de luta. É fé no aqui-agora, e não em promessas abstratas apenas. E por isso é humana, contraditória, falha e mortal.


Assista ao trailer aqui.


quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

#2 - No, de Pablo Larraín



Quase desisti de escrever sobre esse filme pro blog. Assisti há alguns dias, e gostei tanto que achei que ele merecia uma crítica mais aprofundada, objetivo que este blog não tem. Aqui pretendo apenas fazer um registro dos filmes que assisti em 2013, e breves comentários sobre eles.

Mas o filme é tão relevante para a discussão entre cinema e política, que é o tema escolhido pro blog, que não tinha como simplesmente ignorá-lo. Então, com o perdão dos comentários que nunca chegarão à altura da complexidade do filme, vamos lá.

"No" faz parte de uma trilogia do diretor Pablo Larraín sobre a ditadura de Pinochet no Chile (os outros filmes são Tony Monero, de 2008, e Post Mortem, de 2010). Nesse último, a história se concentra em torno do plebiscito convocado pelo próprio Pinochet para legitimar seu governo. A população votaria em "SÍ" caso quisesse que Pinochet continuasse no poder, ou "NO", caso quisesse que ele saísse e fossem convocadas eleições presidenciais. O protagonista, representado pelo maravilhoso ator Gael Garcia Bernal (aiai...), é um jovem publicitário contratado pelos organizadores da campanha contra Pinochet para elaborar as estratégias e propagandas.

O que torna tudo mais interessante é exatamente o fato de o personagem vir do mundo da publicidade. Com essa combinação explosiva entre marketing e política, o filme faz um mapeamento da história da Esquerda e das suas tentativas de representação e intervenção cultural na luta de classes. Assim, acaba se tornando metalinguístico, indiretamente trazendo à tona a discussão do que é fazer cinema político, quais são as estratégias estéticas e os limites éticos por trás disso. Tanto a monotonia e mesmice das campanhas mais 'tradicionais' de Esquerda, que se mostram incapazes de dialogar com seu público ao repetir as mesmas fórmulas de décadas (para não dizer séculos) passados, quanto a brutal infantilização e apagamento histórico     das novas estratégias quase que puramente mercadológicas da campanha proposta pelo publicitário são alvos da crítica do filme.

Vale ressaltar aqui que o filme é incrivelmente divertido. Damos muitas risadas ao ver os absurdos que cada campanha faz para conseguir atrair a atenção da população chilena, e vemos que muito do marketing político surreal dos últimos anos já existe há muito tempo. Apelações das mais incríveis, estéticas das mais bregas, composições musicais e cenários de chorar... Enfim, só vendo o filme pra entender até onde a coisa vai.

Se o saldo final do filme é otimista ou não, fica difícil dizer. Ele possui uma estrutura circular que parece apontar para um certo cinismo de que não há nada de muito novo no front, mas é inegável o fato de que a ditadura chilena foi derrotada em grande parte POR CAUSA dessas estratégias problemáticas. Na minha opinião - que talvez vá além do filme - a mensagem é que, quer queiramos ou não, precisamos admitir que o cenário político é outro, e que novas estratégias (não necessariamente as da publicidade) são necessárias.

Uma curiosidade estética do filme é a escolha do diretor em filmar com uma câmera U-matic 3/4, comumente usada no final da década de 80, para dar mais realismo às imagens. Assim conseguiu obter a textura e as cores dos documentários de televisão chilenos da época que se confundem com as cenas de ficção do filme. [Fonte: http://www.socinema.com.br/no-pablo-larrain]

Nas palavras do diretor: “Eu cresci nos anos 80, durante a ditadura. O que vimos na televisão, as imagens em baixa definição, era uma imagem suja que está intocada no meu imaginário. Assim como na memória coletiva do povo chileno que está cheia de lembranças de escuridão e impureza”.

O trailer com legendas em português pode ser visto aqui.

Não preciso nem dizer que os outros dois filmes da trilogia já entraram na lista dos filmes que pretendo ver em 2013, né?



quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

#1 - Rebeldes do futebol


Para estrear o blog, nada melhor do que um filme que eu não fazia ideia que existia, e que foi indicação de amigos que estavam em casa comemorando a virada do ano. Além disso, que foi exibido num canal que eu nunca assisto, o Sportv. E que tem como tese a defesa das relações entre fenômenos culturais e política. No caso, o futebol.

Eu, que já fui são-paulina e hoje sou corintiana passiva, confesso que já tive minha dose de desilusão com o esporte, e já cheguei a afirmar, nos meus tempos de "intelectualóide sangue-nos-óio", que futebol era o ópio do povo.

Porém, como o filme "Rebeldes do Futebol" - e a vida - ensinam pra gente, as coisas não são tão simples assim. Como todo fenômeno cultural, o futebol é também palco das contradições sociais que estão fora do campo, quer a gente goste ou não, quer ele reflita momentos de maior conservadorismo ou de "rebeldia".

Bem, o filme mapeia exatamente esse último ponto: a existência de rebeldes na história do futebol, de figuras que tiveram papéis importantes na política através do esporte. Esse tema já foi discutido (brilhantemente, na minha opinião) em "Invictus", do Clint Eastwood - apesar de não ser sobre futebol, mas sobre rugby, e de maneira mais indireta (e ainda mais brilhante) em "À procura de Eric", de Ken Loach.

Este é um documentário sobre 5 jogadores de futebol que foram militantes de causas importantes em seus países. E é narrado por um sexto jogador, Eric Cantona, que também tem suas histórias de rebeldia e engajamento.

Os 5 personagens são: o bósnio Predrag Pasic, o marfinense Didier Drogba, o chileno Carlos Caszely, o argelino Rachild Mekhloufi e o brasileiríssimo Sócrates.

De quebra, ainda temos uma homenagem final ao Che Guevara, frases grandiloquentes e performáticas de Cantona, o gatíssimo Raí falando sobre seu irmão Sócrates e o grande Ken Loach falando sobre o futebol como metáfora do espírito de coletividade que nos é tão raro atualmente.

Para mim, os melhores momentos estão nos depoimentos do chileno Caszely, ao nos contar a história de quando ele se recusou a apertar a mão de Pinochet.

E pra nós, brasileiros, é emocionante aprender mais sobre o projeto da Democracia Corintiana, e rever imagens da polêmica camisa do finado Sócrates e das faixas de apoio às eleições em plena ditadura.


No site oficial do filme há muito mais informações e spoilers para quem quiser.


ORIGINAL: Les Rebelles du Foot (2012)
PAÍS: França
DIRETOR: Gilles Rof, Gilles Perez
90 minutos