Django Livre me surpreendeu positivamente. Muito. Para começar, não costumo gostar dos filmes do Tarantino; simplesmente não fazem meu tipo. A sensação que tenho, em geral, é que eles possuem um “fetiche da violência”, ou que transformam violência em estética, quase como um prazer mórbido.
Django Livre é um filme extremamente violento, talvez bem mais do que os outros do Tarantino. Mas nesse filme a violência é o tema, e escancará-la para nós torna-se o mais interessante do filme, pois o passado da escravidão sempre foi algo que nós brancos da América tentamos esconder. A violência extrema do filme nos faz pensar por que é ruim ver tanto sangue derramado. O desconforto vem da culpa? Ou do medo de um dia essa violência se voltar contra os brancos?
Algumas coisas em Django Livre são muito específicas da experiência norte-americana com a escravidão, a violência e a lei. Outras, porém, são tão parecidas com as relações que existiam na escravidão brasileira (e cujos resquícios temos até hoje) que chegam a arrepiar. O misto de cordialidade e violência, por exemplo, permeia todo o filme. Algumas cenas poderiam ilustrar facilmente um capítulo de Casa-Grande e Senzala. E me fizeram lembrar muito o filme brasileiro Quanto vale ou é por quilo.
As referências que Tarantino faz à linguagem de faroeste são incríveis. Principalmente quando se pensa no simbolismo todo que o faroeste possui; os fora-da-lei, a justiça com as próprias mãos, a vontade de contar histórias sobre a expansão norte-americana em busca de novos territórios. A grande diferença é que o protagonista é um negro, e isso causa desconforto. Primeiramente, o desconforto está dentro da narrativa, a cada esquina que Django chega montado em seu cavalo (como Rosa Parker sentada no ônibus causou nos anos 1950). Fora da narrativa, o desconforto está em nós, espectadores, que sentimos ao mesmo tempo uma catarse muito grande em vê-lo “matar brancos e ainda ganhar dinheiro com isso”, e um certo arrepio em imaginar que os injustiçados do passado (e por que não os do presente?) podem se cansar da servidão forçada e exigir justiça.
Apesar da ousadia de colocar um negro como protagonista num momento histórico em que eles sequer eram considerados seres humanos, a crítica acusa o filme de pecar no uso da sátira. “Não levar a escravidão a sério é um desrespeito”, disseram muitos bem-intencionados. Discordo. O desrespeito deve sim ser criticado, afinal penso que o humor não é uma carta branca para se dizer qualquer bobagem, e estar acima das posições políticas. Mas não creio que esse seja o caso de Django Livre. Aqui, a sátira é usada não para debochar ou diminuir a experiência da escravidão, mas para incomodar, fazer pensar. A única cena de deboche que eu vi no filme foi a que mostra um grupo que seria protótipo da KKK. Sim, eu ri muito, e senti o filme debochar por completo dos personagens. E isso mostra que o humor se posiciona, sim, politicamente. Como era contra o movimento mais escroto da história dos EUA, digamos que eu não encarei essa parte exatamente como um defeito do filme.
Li também alguns críticos acusando o filme de simplismo, ao colocar os brancos todos como seres maléficos que precisam ser exterminados violentamente pelos negros. Não vi isso no filme. Aliás, o grande personagem do filme nem é Django, e sim seu parceiro Schultz, um branco progressista que é o mais próximo de “herói” na narrativa, talvez o grande exemplo de consciência contra os abusos da escravidão. E isso sem perder as sutilezas de mostrar sua própria profissão (caçador de recompensas) como uma espécie de tráfico de pessoas-mercadorias, assim como a escravidão que ele tanto critica. E o que dizer de Stephen, o negro que defende com unhas e dentes a escravidão, o mais próximo de “vilão” que existe no filme?
Finalmente, há quem diga que o filme distorceu a História ao colocar Django em situações que um negro jamais poderia ter conseguido viver naquele momento histórico. Já discordaria desse argumento por ser completamente absurdo exigir que a arte sirva apenas como retrato fiel da realidade. Mas o que mais me espanta é que as pessoas vejam o personagem Django como um homem livre. Em nenhum momento do filme ele está livre de fato. Ele está sempre interpretando um papel para conseguir o mínimo de respeito das pessoas – brancos e negros – aonde quer que vá. E mesmo assim, como é dito no filme, Django é 1 em 10.000. A exceção de Django só confirma a regra. Mas que é lindo vê-lo montado em seu cavalo com a donzela que resgata, por mais “historicamente inverossímil” que isso seja, ah, isso é! E é por isso que a ficção nos encanta; por ser capaz de figurar coisas que a sociedade em si ainda não é/era capaz de figurar.
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